Filosofia do ENEM – conteúdo completo


Filosofia

Sumário

1. Filosofia Antiga

– Origens da Filosofia

– Sócrates (470-399 a.C.)

– Platão (427-347 a.C.)

– Aristóteles (384-322 a.C.)

– De Aristóteles à Idade Média

2. Filosofia Medieval

– Patrística

– Escolástica

– A querela dos universais

3. Filosofia Moderna

– René Descartes

– David Hume

– Immanuel Kant e o criticismo

– Francis Bacon e Galileu Galilei

– Nicolau Maquiavel

– Thomas Hobbes

– John Locke

– Jean-Jacques Rousseau

4. Filosofia Contemporânea

– Hegel

– Karl Marx

– Friedrich Nietzsche

– Século XX

– Fenomenologia

– Jean-Paul Sartre

– Filosofia da ciência: Popper e Kuhn

– Jürgen Habermas

1. Filosofia Antiga

A. Origens da Filosofia

A filosofia ocidental nasceu na Grécia Antiga, no século VI a.C., tendo o uso da razão como instrumento para obter o conhecimento (razão, em grego, é logos). Os gregos tinham uma relação muito “pessoal” com seus deuses, enquanto esses deuses eram a reprodução da figura humana, ou seja, continham as virtudes e os defeitos dos homens. A própria mitologia aproximava os gregos de uma maior preocupação com a figura humana. Essa centralização no humano fez com que, lentamente, a mitologia fosse dando lugar a um pensamento mais focado no logos, isto é, na razão.

Os primeiros filósofos tinham como preocupação essencial explicar a origem e o funcionamento do mundo exterior. Por isso são conhecidos como filósofos da natureza, ou filósofos da physis, pois suas inquietações iam em direção de se compreender e de se explicar os fenômenos da natureza. Por conta do foco na physis e pelo fato de muitos deles terem vivido antes de Sócrates, o filósofo ateniense considerado precursor da discussão em torno do ser humano, esses filósofos são chamados de pré-socráticos.

Tales de Mileto é considerado o primeiro filósofo pré-socrático e, portanto, o primeiro filósofo grego. Ele pertenceu ao grupo dos filósofos jônicos, assim como Anaximandro, Anaxímenes, Anaxágoras e Heráclito. Outro pré-socrático de destaque foi Pitágoras, pertencente à escola itálica. Mas ainda devemos destacar os representantes da escola eleática, como Xenófanes, Parmênides e Zenão, além dos integrantes da escola atomista, Leucipo e Demócrito.

Para os pré-socráticos, a questão era saber como do caos (desordem) foi possível a criação do cosmos (mundo) – passagem da cosmogonia (explicação do mundo por meio dos mitos) para a cosmologia (busca por uma explicação racional do mundo). Eles acreditavam que um princípio (em grego, arché) de todas as coisas seria a razão explicativa para a ocorrência dessa transformação. A água, o ar, o átomo ou a combinação de água, terra, fogo e ar foram algumas das respostas dadas por esses filósofos.

Sócrates (470-399 a.C.)

Cidadão de Atenas, Sócrates viveu o apogeu e a decadência da democracia. Rivalizou com os sofistas (“sábios”), entre eles, Górgias (485 a 380 a.C.) e Protágoras (485 a 411 a.C.), cuja principal característica era a preocupação intelectual de como obter um raciocínio melhor. Mediante pagamento, os sofistas ensinavam aos cidadãos as técnicas da retórica e da persuasão. Para Sócrates, a Filosofia era uma reflexão profunda de conceitos tidos como inquestionáveis: a coragem, a justiça e a sabedoria, entre outros. Era preciso combater as opiniões originárias do senso comum para se obter o verdadeiro conhecimento.

Para tanto, o método socrático consistia em estabelecer diálogos críticos com seus interlocutores, divididos em dois momentos básicos: a ironia (do grego eironeia, “perguntar fingindo ignorar”) e a maiêutica (do grego maieutiké, a “arte do parto”). O método consistia em, por meio do diálogo, fazer um interlocutor discorrer sobre determinado assunto que ele acreditasse dominar, para dirigi-lo à contradição e demonstrar sua real ignorância sobre o assunto referido. Sócrates não enunciava teorias, mas fazia perguntas e analisava respostas sucessivamente, mostrando a seu interlocutor as contradições daquilo que estava falando. Dessa maneira, procurava mostrar a seu interlocutor o quanto “pensamos” que sabemos, quando, na verdade, sabemos muito pouco. Não interessa se falamos bonito, mas se sabemos sobre o que estamos falando. Assim, a questão do conhecimento passava a ser o próprio ser humano.

A única afirmação que Sócrates fazia com toda certeza era: “só sei que nada sei”.

Sócrates também inaugurou as discussões sobre a moral, mediante a doutrina de que ética significa ação racional. Segundo ele, a virtude é a própria razão. A finalidade humana é a prática do bem e este se realiza mediante a virtude que, por sua vez, realiza-se mediante o conhecimento racional.

Ética é o campo da filosofia que trata de questões morais como o discernimento entre o bem e o mal, a busca da felicidade e os valores que atribuímos a nossas condutas, entre outras ações. Atualmente, a ética tem sido empregada em um sentido bastante prático em torno dos problemas ambientais, das descobertas e realizações da medicina, nas relações de trabalho e outras.

Platão (427-347 a.C.)

Assim como Sócrates, seu mestre, Platão também era cidadão ateniense. Graças a seus escritos, como A Apologia de Sócrates, O Banquete e A República, entre outros, conhecemos o pensamento socrático, uma vez que Sócrates nada escreveu.

A principal característica do pensamento platônico encontra-se na sua teoria do conhecimento. Influenciado pela maiêutica de Sócrates, Platão preocupava-se em obter a verdade e, para isso, elaborou uma teoria acerca das ideias. Retomando a discussão posta por Parmênides e Heráclito, essa teoria parte do princípio de que existem dois mundos: o dos sentidos (mundo sensível) e o das ideias (mundo inteligível). O mundo sensível seria aquele referente aos sentidos, enquanto o mundo das ideias se localiza na razão humana. Platão afirmava ser necessário ao filósofo desvendar a fundo o mundo das ideias, também conhecido como mundo inteligível, pois ele é que comporta a verdade.

Tomemos este exemplo: existem vários tipos de cachorros, de cores, tamanhos e raças diferentes, conforme podemos observar no mundo sensível; mas, no mundo das ideias existe a ideia de cachorro que é única, pois o mundo das ideias existe de forma anterior e mais efetiva que o mundo sensível. Para o verdadeiro conhecimento humano, pouco importa aquilo que é apreendido pelos sentidos, pois é a razão a única e exclusiva fonte de sabedoria.

Para ilustrar sua teoria, Platão elaborou o Mito da Caverna – ou Alegoria da Caverna –, que narra a situação de homens acorrentados no fundo de uma caverna, de costas para a entrada. Essa entrada está sempre iluminada, de tal maneira que a única coisa que os homens dentro da caverna conseguem ver projetadas na parede do fundo são as sombras das pessoas e animais que circulam na frente da caverna. Essas sombras corresponderiam ao mundo sensível, enquanto os seres e as coisas, assim como todo o mundo fora da caverna, corresponderiam ao mundo das ideias. Era fundamental para o filósofo fazer justiça ao seu ofício e mostrar aos homens o mundo real, mesmo que corresse o risco de não ser entendido por eles. Segundo Platão, “a reflexão das ideias é o caminho para se obter a felicidade”. Ainda segundo ele, a educação seria a fonte principal para formar os filósofos. Isso significa que a educação seria capaz de retirar a pessoa do “mundo das sombras” e levá-la ao encontro da “luz do conhecimento”.

A filosofia platônica tem um fim prático e moral que se realiza intelectualmente por meio do conhecimento verdadeiro. Existe uma desordem que se manifesta em especial no ser humano, em que o corpo é inimigo do espírito, o sentido se opõe ao intelecto e a paixão contrasta com a razão. A alma humana (razão) é uma espécie de prisioneira na “caverna” do corpo. Portanto, o ser humano deve transpor o mundo das sombras, libertando-se do corpo para realizar o seu fim, isto é, chegar à contemplação do inteligível. Só assim o ser humano pode atingir a luz do conhecimento e desfrutar do verdadeiro bem, da felicidade.

Em A República, Platão descreve algumas de suas principais concepções sobre política. Na cidade, espaço em que ela se realiza, existe sempre a classe dos dirigentes (racional), a classe dos militares (irascível) e a classe dos produtores (concupiscente). Essa é a divisão da “cidade ideal” pensada e defendida por Platão. Nela, o governo não pode estar nas mãos de todos, porque as pessoas

devem ser separadas de acordo com as suas funções na sociedade. O comando deve estar nas mãos daqueles que estão mais próximos da razão. Associando com o Mito da Caverna, a ideia é a de que o governante só pode ser aquele que consegue abandonar o mundo das sombras e chegar à luz verdadeira, ou seja, abandonar o mundo sensível e abraçar o mundo inteligível (governo dos reis-filósofos).

Aristóteles (384-322 a.C.)

Aristóteles, o mais ilustre discípulo de Platão, estudou sobre a natureza do ser humano, pesquisou as formas de governo e as razões da política e estabeleceu as primeiras regras para o estudo da lógica.

Aristóteles discorda da teoria do conhecimento proposta por Platão, pois, para ele, a “alma” não está separada do “corpo”, mas é um componente dele. O conhecimento é percebido pelos sentidos e, então, elaborado pela razão. Existe uma interação entre os sentidos e a razão. O filósofo deve buscar o conhecimento daquilo que realmente existe partindo de conceitos que exprimem nossas ideias sobre o mundo sensível.

Entendendo a importância da questão do devir (transformação), ele elaborou as noções de ato e potência. O ato seria o estado atual do ser, enquanto a potência seria aquilo em que o ser se transforma, sem que deixe de ser o mesmo. Assim, uma criança é um ato enquanto criança, mas enquanto potência será um adulto, sem deixar de ser um humano.

As transformações e o movimento são os responsáveis pelo modo no qual as potências se tornam atos. E isso não ocorre por acaso, pois sempre há uma causa, de quatro tipos: material, formal, motriz (ou eficiente) e final.

Tomemos como exemplo uma estátua: o mármore seria a causa material; um modelo para o artista realizar o seu trabalho de esculpir a estátua seria a causa formal; o escultor, a causa motriz (ou eficiente); e, por fim, exibir a estátua seria a causa final.

Aristóteles mostrou a relação possível entre os conceitos de modo que eles fizessem surgir proposições (afirmações) que, por sua vez, produziriam os silogismos (em grego, “cálculo” ou “reunião de raciocínio”), o verdadeiro conhecimento. Um exemplo clássico de silogismo é este:

Todos os homens são mortais.

Sócrates é ser humano.

Logo,

Sócrates é mortal.

O raciocínio silogístico é dedutivo, ou seja, parte de um conhecimento maior para se chegar a uma parte. Perceba que na conclusão do exemplo dado acima há uma informação que já estava contida nas premissas, e essa é uma característica da argumentação dedutiva, isto é, ela não acrescenta novidade alguma para o conhecimento, mas é importante para organizá-lo.

Sobre ética, a obra mais importante de Aristóteles é Ética a Nicômaco. Preocupado com a essência das coisas, ele afirma que todo ser tem uma tendência necessária à realização da sua natureza, ou seja, à atualização plena de sua forma, e é nisso que reside o seu fim, o seu bem, a sua felicidade. Portanto, se a razão é a essência característica do ser humano, ele só a realiza vivendo racionalmente e tendo consciência disso. Só dessa forma o ser humano consegue a plena felicidade.

Não devemos levar nossas ações e decisões a pontos extremos, mas devemos sim encontrar um equilíbrio entre elas, um “meio-termo” que não nos permita sermos exagerados ou faltosos: viver bem é viver racionalmente, em equilíbrio e com prudência.

A concepção aristotélica de ética aplicada ao ser humano, quando levada à esfera do social, desemboca na sua concepção sobre a política: se, individualmente, a figura humana tende à busca pela felicidade, em grupo essa tendência deverá ser a mesma. Isso implica pensar que um governo correto e justo é aquele que se paute pela busca da felicidade comum. Esse é o papel da política.

Dessa forma, a política é um desdobramento natural da ética. Se a ética trata da felicidade individual do ser humano, a política, por sua vez, deve tratar da felicidade coletiva da pólis. Sendo assim, cabe à política a tarefa de determinar quais são as formas de governo e as instituições capazes de assegurar a felicidade coletiva.

Segundo Aristóteles, a coletividade é superior ao indivíduo, o bem comum é superior ao bem particular. Logo, o Estado é a instituição por meio da qual se efetua a satisfação de todas as necessidades humanas, pois o ser humano é um animal social, político.

E. De Aristóteles à Idade Média

Com o domínio de Alexandre Magno sobre as cidades-Estado gregas, além de uma vastidão de territórios que incluíam do Egito até a Índia, floresceu a cultura helenística, síntese da cultura helênica (grega) com a cultura oriental. Quanto ao aspecto filosófico da cultura helenística, destaca-se:

– Cinismo (pensamento individualista de inspiração socrática que desprezava todas as convenções) de Diógenes (413-323 a.C.).

– Ceticismo (doutrina que se fundamentava no reconhecimento da impossibilidade de obter o conhecimento real das coisas) de Pirro de Élida (360-275 a.C.).

– Epicurismo (pensamento moral que acreditava no prazer como a chave para a felicidade) de Epicuro (341-270 a.C.)

– Estoicismo (ideal de busca de total harmonia com a natureza, dominando as paixões e sofrimentos do cotidiano) de Zenão de Cício (336-264 a.C.).

Essas correntes filosóficas têm duas características em comum: serem seguidoras dos ensinamentos de Sócrates, Platão e Aristóteles e terem claro que a felicidade plena do ser humano não é mais possível, dentro do ideal de participação nas decisões da pólis, devido à paralisia que se abateu sobre a política. A filosofia helenística se volta para o individualismo, como perspectiva de conquista da felicidade.

Durante o domínio romano na bacia do Mar Mediterrâneo, o pensamento filosófico permaneceu importante e atuante devido a filósofos latinos como Cícero (106-43 a.C.), Sêneca (4 a.C.-65 d.C.) e o imperador romano Marco Aurélio (121-180) – estes dois adeptos do estoicismo –, além de Plotino (205-270), iniciador do neoplatonismo. Sem trazer originalidade no que diz a respeito aos temas típicos da filosofia, os latinos contribuíram para a formação da cultura ocidental com a conceitualização e sistematização do Direito.

2. Filosofia Medieval

A. Patrística

À medida que o cristianismo crescia e se consolidava dentro dos limites do Império Romano, os cristãos organizaram uma instituição chamada por eles de Igreja (do grego eklesia, ou seja, “assembleia”), dirigida por padres e bispos. A partir daí começaram as divergências entre os vários grupos cristãos, a fim de assegurar qual deles daria o caminho mais correto para ser seguido por todos.

Essa disputa teve como consequência o Concílio de Nicéia, em 325, que resultou na ortodoxia (“opinião correta”), originando a Igreja Católica.

Contudo, a “opinião correta” não podia se impor apenas pelo uso da força, ou tão somente pela revelação (crença, fé). Era preciso que a ortodoxia também fosse resultado do uso da razão. Foi nesse contexto que surgiu a filosofia patrística (“filosofia dos santos padres”), que tinha como uma de suas principais missões a conciliação da fé com a razão.

A filosofia patrística teve em Santo Agostinho o seu maior expoente. Nascido em 354, Agostinho converteu-se ao cristianismo em 386. Foi bispo de Hipona, no norte da África, de 395 até 430, ano de sua morte. Entre suas obras mais importantes estão A Cidade de Deus e Confissões.

Apoiado no platonismo, o modo como esse pensador abordou a relação “razão versus fé” acabou por transformar a razão em uma forma de demonstração da necessidade da fé para o ser humano. Daí a necessidade de “compreender para crer, crer para compreender”, segundo afirma o próprio Agostinho. Não se trata de diminuir a importância da razão, mas sim de afirmá-la enquanto meio para se chegar à fé. Se o “conhecimento da verdade” é fato (por exemplo, a matemática), resta saber o que torna possível tal conhecimento. Ele não pode ter origem no próprio ser humano, isto é, não pode ter origem apenas na capacidade humana de raciocinar, pois este tipo de conhecimento é perecível e mutável, enquanto a verdade é eterna. Agostinho vê aí uma incompatibilidade. Logo, o conhecimento da verdade só pode estar acima do ser humano e de todas as coisas: o conhecimento só pode vir de Deus. O pensamento de Santo Agostinho predominou na Igreja Católica durante toda a Alta Idade Média.

Escolástica

Na Baixa Idade Média surgiu a filosofia escolástica. O nome vem das primeiras universidades europeias, conhecidas como “escolas”, todas controladas pela Igreja Católica.

São Tomás de Aquino (1225-1274) está para a escolástica assim como Santo Agostinho está para a patrística. Seu principal livro é a Suma Teológica e seu pensamento é conhecido como tomismo.

Sua grande preocupação foi provar a existência de Deus. O simples fato de definir que Deus existe

simplesmente por ser perfeito não conseguiria provar a Sua existência real; a definição seria uma ideia e, enquanto tal, nada garantiria sua existência efetiva.

Assim como Agostinho se baseou no platonismo, Tomás de Aquino se apoiou no pensamento de Aristóteles para elaborar sua argumentação filosófica. O contato de Tomás de Aquino com a obra de Aristóteles se deu por meio dos escritos de Averróis.

A presença da filosofia aristotélica nas universidades europeias à época de Aquino era intensa. Isso se deu por causa de um filósofo de ascendência árabe chamado Averróis (1126-1198), que, morando na Península Ibérica (área dominada pelos árabes islâmicos), influenciou a Europa Ocidental com os seus estudos sobre a filosofia de Aristóteles, até então esquecida na Europa.

Apoiado pela teoria das quatro causas de Aristóteles, Aquino buscou sintetizar a fé e a razão, pois, segundo ele, não existem contradições entre a filosofia e a fé cristã. Somente a fé e a revelação cristã são capazes de atingir as puras verdades espirituais. Juntamente com estas, existem as verdades naturais teológicas, que podem ser obtidas tanto por meio da fé e da revelação como também pela razão e pelos sentidos.

Como exemplo de uma verdade natural teológica, tomemos o fato da existência de Deus. Poder-se-ia provar tal afirmação seja pela razão, seja pela fé. Contudo, a última seria mais segura para se obter o conhecimento.

Para provar a existência de Deus, Aquino sistematizou o problema a partir do mundo sensível, ou seja, do mundo perceptível pelos sentidos, desenvolvendo as chamadas “cinco vias” que levariam a provar a existência de Deus, causa primeira de todas as coisas e que não é causada.

– Primeira via: argumento do movimento ou do primeiro motor (tudo o que se move e se transforma na atualização de uma potência, é movido por algo que lhe é exterior, sendo necessário existir um princípio movente que não seja ele próprio mutável: o primeiro motor imóvel, que é Deus).

– Segunda via: o argumento da causalidade eficiente ou da causa primeira (nas relações de causalidade, um efeito é necessariamente antecedido por uma causa, e o que é causa para um efeito é, em igual medida, efeito de uma causa anterior; tal situação se sustenta na causa primeira, que não é efeito, e da qual decorrem todas as relações de causa e efeito imanentes ao mundo: essa causa primeira é Deus).

– Terceira via: os seres contingentes e o ser necessário (os seres da natureza são contingentes, isto é, podem ser e podem não ser, algo que é atestado por nossa experiência sobre a geração e a corrupção dos seres existentes. Porém, a existência do mundo requer um ser necessário, que jamais transita para o não ser e sem o qual não existiriam os seres contingentes: esse ser necessário é Deus).

– Quarta via: os graus de perfeição dos seres e o ser perfeito (há diferentes níveis de perfeição nos seres, o que nos permite afirmar, em uma perspectiva comparativa, que existem seres mais perfeitos e seres menos perfeitos. Constata-se, assim, uma gradação de perfeição que procede de um parâmetro de absoluta perfeição, remetendo ao ser perfeito: esse ser perfeito é Deus).

– Quinta via: o sentido teleológico, segundo o qual todos os seres do mundo possuem uma finalidade, sendo que até mesmo os seres incapazes de conhecimento agem conforme um fim que lhes é inerente, em sintonia com a ordem do Universo. Esse Universo rigidamente ordenado, em que todas as coisas são direcionadas a um fim, revela o governo de uma inteligência ordenadora: essa inteligência ordenadora é Deus.

A querela dos universais

A polêmica dos universais, desenvolvida na passagem da Alta para a Baixa Idade Média, examina as relações conceituais entre os termos que designam uma multiplicidade de individualidades e essas individualidades em si mesmas. Termos como “humanidade” são conceitos com realidade objetiva ou são simples nomeações desprovidas de conteúdos reais? Em torno desse problema, desenvolvem-se, na filosofia medieval, três concepções: o realismo, o nominalismo e o realismo moderado.

– Realismo: compreende os conceitos como realidades objetivas. Segundo esse ponto de vista, a humanidade é um conceito real e os seres humanos singulares são realizações específicas dessa realidade conceitual.

– Nominalismo: entende que os termos universais são somente palavras sem conteúdo real, que não se referem com pertinência à realidade, pois o que realmente existe são as individualidades que efetivamente se observam no mundo. Sob essa ótica, humanidade é somente um termo convencional, porque o que existe de fato são os múltiplos seres humanos em sua vida concreta.

– Realismo moderado: defendido por Pedro Abelardo (1079-1142), é uma tese intermediária, na qual os elementos que formam os indivíduos, suas características universais e suas características singulares, não são objetivamente dissociáveis; eles existem concretamente nas composições individuais. Entretanto, esses diferentes elementos são discernidos pelo intelecto humano que, mediante o procedimento da abstração, identifica os aspectos comuns das individualidades, os quais consistem, assim, em conceitos universais.

3. Filosofia Moderna

René Descartes

Segundo Descartes (1596-1650), para se ter o verdadeiro conhecimento de alguma coisa é necessário que sejam eliminadas todas as dúvidas possíveis a respeito daquilo que se pretende conhecer. A dúvida serve como método (dúvida metódica) para o sujeito que pretende conhecer determinado objeto.

Se podemos duvidar de tudo, isso já é um fato em si e, se podemos duvidar, isso implica em outro fato: o que nos permite duvidar? Duvidamos porque temos a capacidade de pensar; logo, se pensamos é porque existimos (“penso, logo existo”, que, em latim, é cogito, ergo sum).

A dúvida metódica nos permite encontrar a primeira e inquestionável verdade clara e distinta: existo porque sou antes de tudo uma coisa pensante. Descartes retoma a importância da razão como fonte primeira do conhecimento verdadeiro. Um ser que pensa tem uma compreensão real.

As ideias produzidas pela razão são chamadas por Descartes de ideias claras e distintas. Elas correspondem a verdades inquestionáveis e são inatas, ou seja, já nascemos com elas.

Em Descartes, o ponto de partida da análise é o sujeito (que nesse caso é o cogito, ou seja, a razão) que investiga o objeto (o mundo). A reunificação da unidade ser humano-natureza se dá do sujeito para o objeto. A análise de Descartes parte dele próprio, isto é, do indivíduo que quer compreender o mundo.

Assim como Platão, que separou o “mundo das ideias” do “mundo sensível”, Descartes também separa a “alma” (res cogitans – razão) do “corpo” (res extensa – sentidos). O conhecimento obtido pela razão é mais seguro do que aquele obtido pelos sentidos.

A corrente filosófica cartesiana é conhecida como racionalismo e influenciou outros importantes pensadores da Idade Moderna, como o alemão Leibniz (1646-1716) e o holandês Spinoza (1632-1677).

David Hume

Hume (1711-1776) foi o maior expoente do empirismo. Se, para Descartes, a razão é tudo e por isso as ideias são inatas aos homens, para Hume isto é impossível, pois o ser humano está submetido aos sentidos: as ideias são meros reflexos das impressões que obtemos do mundo exterior.

A filosofia empírica (filosofia da experiência) entende que o ser humano é primeiramente vazio de saber, como uma lousa limpa. Por meio da experiência proporcionada pelos sentidos, ele descobre, por exemplo, que a água é diferente do álcool. A razão tem seu papel na formação do conhecimento, mas de uma forma secundária frente aos sentidos.

Hume questionou a validade da relação “causa e efeito” à maneira como era usada pelos racionalistas. Para ele, se sabemos que o fogo é a causa do calor, isso ocorre devido à experiência, por meio da qual percebemos tal fato. Não se trata de um conhecimento inato relacionar o fogo como a “causa” do “efeito” calor. Contudo, a experiência não nos revela que “o fogo é a causa do calor”, mas sim que “há fogo, portanto há calor”. “Fogo” e “calor” são exteriores entre si e não há nada que os relacione interiormente. Para Hume, “causa e efeito” não são necessariamente ligados entre si.

Dessa forma, quem nunca tiver sofrido um ferimento jamais terá a ideia de dor relacionada a um ferimento, a não ser por uma crença desenvolvida a partir do hábito que temos de acreditar e aceitar algumas “verdades”, o que levou Hume a tratar da questão das crenças. Para ele, a crença seria a atitude de aceitação de uma verdade que possui uma determinada certeza, sem poder ser comprovada racionalmente. Esta atitude da aceitação vem da necessidade que os homens têm em acreditar nos acontecimentos. O ser humano se habitua a crer nas leis imutáveis da natureza ou na sua causa e efeito.

A crença não pode ser confundida com ficção, uma vez que ela é mais viva por apoiar-se no hábito, produzindo a sensação

de que os fatos naturais ocorrem com regularidade. O que me leva a acreditar em certas coisas que não vejo ou não posso tocar, por exemplo, é a crença sustentada pelo hábito. O “eu” metafísico não pode existir, mas sim a natureza humana, ou seja, a maneira pela qual as ideias são naturalmente associadas pelo pensamento.

Um dos iniciadores da ideia da experiência como fonte de conhecimento na Idade Moderna foi o filósofo inglês Francis Bacon, cuja influência sobre outros filósofos do Reino Unido foi fundamental. Entre os grandes nomes do empirismo inglês estão também John Locke e Thomas Hobbes.

Immanuel Kant e o criticismo

Kant (1724-1804) busca superar a dicotomia racionalistas-empiristas, além de propor as bases para a constituição de uma moral.

A filosofia kantiana é tão revolucionária quanto o pensamento de Nicolau Copérnico (1473-1543) foi para a Astronomia e para a ciência em geral (Revolução Copernicana). Enquanto Copérnico colocou o Sol no centro do Universo (teoria heliocêntrica), em oposição à teoria geocêntrica da Antiguidade e do Medievo, Kant colocou a razão no centro de suas análises, partindo do pressuposto de que era necessário perceber o que ela é, o que ela pode ou não conhecer, quais são os seus limites. Não se trata de conhecer o mundo e as coisas que existem nele, seja por meio da razão, seja por meio da experiência: trata-se, primeiro, de conhecer a própria razão.

Para Kant, a razão é uma forma pura, sem conteúdo, e isso é universal. Essa estrutura da razão é inata, portanto, anterior à experiência (a priori). Já os conteúdos que a razão conhece, esses sim, dependem da experiência, caso contrário, a razão seria inoperante. Esses conteúdos só existem a posteriori, pois são fornecidos pela experiência, ou seja, vêm depois. Sendo assim:

Conhecimento verdadeiro = síntese realizada pela razão entre uma forma universal inata e um conteúdo particular oferecido pela experiência.

Kant afirma que não somos capazes de conhecer inteiramente os objetos reais, pois esse conhecimento é limitado por aquilo que somos capazes de pensar a respeito eles. Nosso conhecimento é limitado pelas noções de espaço e de tempo inerentes à nossa razão, e às quais estamos presos. Dessa forma, o “ser em si” não existe, ou seja, não existe um mundo independente do sujeito. O objeto a ser conhecido só existe em função de um sujeito que o conhece: o ser humano.

Para Kant, um iluminista convicto, a resposta à pergunta “O que é o esclarecimento?” – ou seja, o que é o próprio Iluminismo – estava justamente na figura do ser humano, pois este deve sair da “menoridade” do conhecimento e atingir o seu ponto mais alto, sendo que o caminho a ser trilhado é o próprio ser humano, percebendo a sua capacidade de conhecer. É por meio do conhecimento que o ser humano atinge sua liberdade (“maioridade”).

No que diz respeito à ética, Kant afirma que a capacidade que o ser humano tem de diferenciar o certo do errado é inata, ou seja, a moral humana independe da experiência, já nascemos com ela. Sendo anterior à experiência, ela é universal: vale para todas as pessoas, onde quer que elas estejam e em qualquer tempo. O ser humano não escapa do imperativo categórico, ou seja, uma ordem válida para agir em relação a tudo (ética do dever): devemos sempre agir de modo a podermos desejar que a regra a partir da qual agimos se transforme numa lei geral. Quando faço uma escolha e ajo de determinada maneira, preciso estar convicto de que posso desejar que todas as outras pessoas façam a mesma coisa na mesma situação, afinal não posso desejar para os outros aquilo que não quero para mim.

Francis Bacon e Galileu Galilei

O inglês Francis Bacon (1561-1626) defendia a necessidade de conduzir a observação e a experimentação por meio de um método seguro e rigoroso, visando eliminar os “ídolos” que poderiam conduzir o intelecto humano ao erro. Na obra Novo Organum ele critica os quatro “ídolos” que seriam os responsáveis pelo insucesso da ciência:

– Ídolos da tribo: são fundados na própria natureza humana e se referem às imperfeições do intelecto, causadoras da ingenuidade humana de acreditar em coisas que lhes são convenientes.

– Ídolos da caverna: predisposição do intelecto humano em tomar seu mundo particular como verdadeira realidade (o “mundo das sombras” da Alegoria da Caverna).

– Ídolos do foro: demonstram problemas de comunicação entre os homens, pois as palavras nem sempre são tomadas pelo sentido com que são faladas.

– Ídolos do teatro: apontam as doutrinas filosóficas como invencionices especulativas.

Para superar os “ídolos”, Bacon propõe o método experimental, conduzido por um modelo rigoroso de investigação. Segundo ele, é preciso descrever todas as circunstâncias em que um fenômeno ocorre, além de avaliar os casos em que esse mesmo fenômeno não ocorre. Propõe o exame detalhado dos casos particulares e a relação entre eles para chegar-se a uma conclusão geral (trata-se do método indutivo em substituição ao dedutivo). Para Bacon, a experiência como método para desvendar os fenômenos representa também o poder de os manipular. Daí a sua mais famosa frase: “Saber é poder”.

Para o italiano Galileu Galilei (1564-1642), o mundo pode ser traduzido na linguagem matemática. Segundo ele, a observação, na ciência moderna, significa eliminar dos objetos todas as suas qualidades sensíveis, observáveis e empíricas, transformando o mundo em números. Qualidades como “leve”, “pesado”, “sublunar” e “supralunar”, criadas pela observação aristotélica, deveriam ser afastadas em nome de um conhecimento mais preciso e definitivo da natureza.

Antes da experiência precisa haver uma boa teoria, coerente e coesa. Isso quer dizer que não basta apenas a experiência para obter o conhecimento, mas é preciso um conjunto de ideias racionais sobre o problema a ser investigado, para depois expor esse objeto à investigação.

Nicolau Maquiavel

Como era cada vez mais comum à época do Renascimento, Maquiavel (1469-1527) pautava-se por um olhar empírico sobre a realidade, procurando evitar as meras especulações.

Assim como Leonardo da Vinci (1452-1519) observa que a experiência jamais engana e o erro é produto do pensamento especulativo, quando dele se quer tirar consequências físicas, assim também Maquiavel propõe estudar a sociedade pela análise da verdade efetiva dos fatos humanos, sem perder-se em vãs especulações. O objeto de suas reflexões é a realidade política, pensada como prática humana concreta, e o centro maior de seu interesse é o fenômeno do poder, formalizado na instituição do Estado. Não se trata de estudar o tipo ideal de Estado, mas compreender como as organizações políticas se fundam, se desenvolvem, persistem e decaem.

Maquiavel conclui, por meio do estudo dos antigos e da intimidade com os potentados da época, que os homens são todos egoístas e ambiciosos, só recuando da prática do mal quando coagidos pela força da lei. Os desejos e as paixões seriam os mesmos em todas as cidades e em todos os povos.

Recorrendo à história, Maquiavel percebeu que o “Estado ideal” greco-romano, assim como o cristão, não eram Estados possíveis, uma vez que os homens são movidos muito mais por sentimentos negativos do que positivos. Trata-se de uma constatação.

Maquiavel desvincula a política da religião e da moral (ética), afirmando que o poder político ou o poder do Estado tem razões que justificam seus atos. Ao desenvolver essa ideia, ele emprega os conceitos de fortuna e virtú.

O conceito de fortuna remete à ideia daquilo que não está em nosso poder, ou seja, aquilo que não está ao nosso alcance, pois é exterior a nós, independe da nossa vontade, mas que afeta direta ou indiretamente nossas vidas. Por ser algo relacionado com o irracional, muitas vezes nos referimos a essa fortuna como sendo a sorte ou a falta dela. Portanto, a fortuna deve ser entendida como uma coisa inconstante, movida pelo capricho; em suma, não depende da vontade humana.

Quanto à virtú, o seu significado maquiaveliano está relacionado com o seu sentido latino, ou seja, viril. A ideia de virilidade está relacionada com a força e a determinação empregadas por uma pessoa que pretende conquistar algo. Sendo assim, a virtú de um príncipe (governante) não está ligada a práticas morais que visam combater a fortuna, mas sim à capacidade que um príncipe deve ter de se adequar às mais variadas situações provocadas pela fortuna. O príncipe de virtú é aquele que agarra e domina a fortuna, ou seja, aquele que consegue se adequar às circunstâncias, mesmo que para isso precise ser volúvel e inconstante.

Thomas Hobbes

Thomas Hobbes (1588-1679), em Leviatã, formula sua teoria política e inaugura a discussão em torno do princípio de contrato social.

Em Hobbes, a questão do Estado como fator de coesão social, usando como instrumento a política, passa pela discussão do conceito de estado de natureza do ser humano, ou seja, qual a relação que existe entre os seres humanos sem a interferência do Estado. Para Hobbes

, ela não é nada animadora, pois, nela, os serem humanos tendem para a guerra permanente e o que era autoconservação converte-se em destruição, medo e insegurança.

Em seu livro Sobre o cidadão, Hobbes usa duas importantes expressões que retratam bem a sua concepção sobre a condição humana no estado de natureza: “o homem é o lobo do homem” e “guerra de todos contra todos”.

É com base na interpretação hobbesiana sobre o estado de natureza que entendemos a necessidade proposta por ele de um contrato social, por meio do qual se chega ao estado civil, uma vez que os seres humanos só entram na vida em sociedade quando sentem que suas vidas estão ameaçadas.

Em nome da segurança e da preservação, os seres humanos devem abrir mão de suas liberdades individuais em favor de um governo que seja capaz de manter a paz e a vida de todos. Isso resulta na criação do Estado, legitimado pelo contrato social.

Esse contrato consiste no pacto de todos os homens de um só país que, abrindo mão de seu estado de natureza, entregam-se em obediência total a um soberano. Este soberano jamais pode ser questionado ou ter o seu poder dividido (ideia de soberania indivisível), pois representa a vontade de todos aqueles que abdicaram de seus direitos individuais em nome da paz social. Esse é o modelo possível de sociedade civil para Hobbes.

Quanto ao soberano, Hobbes entende que este possa ser uma única pessoa (rei) ou um pequeno grupo de pessoas, ainda que sua preferência seja pela figura do monarca. Hobbes também separa a política da religião: sua teoria sobre o governo centra-se na análise racional e concreta sobre as ações humanas, distanciando-se, assim, daqueles que defendiam o direito divino dos reis governarem.

John Locke

Locke (1632-1704) também é um contratualista, mas, para ele, no estado de natureza os seres humanos expressam tudo aquilo que de mais positivo possuem, uma vez que a liberdade é da natureza humana. É sob o estado de natureza que o ser humano, por meio do trabalho, agrega valor a tudo, inclusive à terra, gerando com isso a propriedade privada.

Para Locke, no estado natural “nascemos livres na mesma medida em que nascemos racionais”. Os homens, por conseguinte, seriam iguais, independentes e governados pela razão. O estado natural seria a condição na qual o poder executivo da lei da natureza permanece exclusivamente nas mãos dos indivíduos, sem se tornar comunal. Todos os homens participariam dessa sociedade singular que é a humanidade, ligando-se pelo liame comum da razão. No estado natural, todos os homens teriam o destino de preservar a paz e a humanidade e evitar ferir os direitos dos outros.

Entre os direitos que Locke considera naturais, está o de propriedade. O direito à propriedade seria natural e anterior à sociedade civil, mas não inato. Sua origem residiria na relação concreta entre o ser humano e as coisas, através do processo de trabalho. Se, graças a este, o ser humano transforma as coisas – pensa Locke –, o ser humano adquire o direito de propriedade.

A lei maior da natureza humana é exatamente a razão. Todos os homens estão submetidos a ela e, por causa dela, cada ser humano deve saber o limite de sua liberdade para que não haja prejuízo para outros homens. Mas, quando um indivíduo comete uma agressão contra outro, por exemplo, a usurpação da propriedade privada, ele abandona o estado de natureza, ou seja, ele abandona a razão e torna-se irracional.

Para Locke, o estado de guerra não coincide com o estado de natureza, como defendia Hobbes: coincide, sim, com aqueles indivíduos irracionais que merecem receber a punição estabelecida pelos indivíduos racionais.

Dessa forma, o contrato social consiste em que todos os homens estejam em acordo com a razão, que é algo natural, para que possam punir os irracionais. Mas, se o governo civil tem a função de garantir a liberdade natural dos homens, como o direito à propriedade privada, esse governo não pode ser outra coisa senão a expressão da vontade de homens igualmente livres. Locke defende um tipo de governo civil no qual o poder de fazer as leis é o mais importante, pois são as leis que garantem a liberdade dos indivíduos. Esse poder deverá estar nas mãos do povo, que deve ser representado por um grupo de indivíduos ligado diretamente a ele.

Dessa forma, a filosofia política de Locke inaugura a defesa da liberdade política (liberalismo político). O governo civil de Locke é uma instituição que pode e deve ser questionada, sempre que ferir os interesses dos governados. O rei pode ser deposto e o Parlamento (encarregado de fazer as leis) pode ser modificado, sempre que um ou outro, ou os dois, não cumpram com suas funções vitais.

Jean-Jacques Rousseau

O iluminista Rousseau (1712-1778) também é um contratualista. Contudo, sua visão sobre estado de natureza, contrato social e estado civil se difere da de Hobbes e Locke. De acordo com Rousseau, o ser humano vivia livre e feliz no estado de natureza, daí a sua concepção do “bom selvagem”. Para ele, o ser humano nasce bom, ou seja, a bondade é da natureza humana. Porém, a vida em sociedade, marcada pelo surgimento da propriedade privada, corrompe o ser humano.

Em O contrato social, Rousseau busca compreender a maneira pela qual os homens, nos mais diversos países, haviam legitimado também os mais variados tipos de poderes políticos em nome do contrato: “o ser humano nasce livre e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que eles”. Ao analisar a passagem do estado de natureza para o estado civil, Rousseau cria uma grande polêmica: “os pobres, só tendo a perder a liberdade, cometeram uma grande loucura ao conceber, voluntariamente, o único bem que lhes restava, para nada ganhar em troca”.

Rousseau era contra a democracia representativa, que aparece em Locke. Partindo da premissa de que todos os homens são iguais e livres em estado de natureza, a liberdade e a igualdade não podem, sob hipótese alguma, serem perdidas pelo ser humano. Mas, para ele, o contrato social deve consistir numa associação entre todos os homens de uma comunidade, formando um corpo moral e coletivo (um corpo político), constituído por todos os membros de sua assembleia fundadora. Logo, o Estado é o próprio povo. O soberano do Estado é o povo e o governo, portanto, deve satisfação à soberania popular. Para que haja uma soberania plena, é fundamental ocorrer a vontade geral, que não se confunde com a vontade de todos, pois a primeira é a manifestação do interesse comum ou do bem público, que, para Rousseau, é a única forma de amenizar a perda da liberdade que existia no estado de natureza, enquanto a vontade de todos seria o somatório das vontades particulares.

Assim, cada indivíduo abre mão de sua individualidade em favor do grupo social, sem que para isso tenha que abrir mão de sua liberdade e igualdade, pois cada indivíduo é, ao mesmo tempo, o Estado e o cidadão.

4. Filosofia Contemporânea

Hegel

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) afirma a importância da História para o conhecimento humano, pois as ideias são construídas ao longo do tempo sempre em um movimento de afirmação-negação, ou seja, um movimento dialético. Por exemplo: em oposição ao racionalismo, surgiu o empirismo, e a contradição dos dois foi superada pelo criticismo de Kant. Portanto, toda tese (afirmação) contém uma antítese (negação), que é superada por uma síntese (uma nova afirmação). Em seguida, a síntese se converte em tese e o movimento não para. Para Hegel, essa era a maneira de apreender o conhecimento humano, pois as ideias podem ser abarcadas em sua totalidade, o que ele chama de Espírito Absoluto.

Karl Marx

Marx (1818-1883) é o criador do materialismo histórico dialético, que se fundamenta no princípio de que a realidade não é algo imutável, mas sim um processo histórico permanente, que obedece a uma lei baseada no fato de que o processo histórico está acima da vontade dos indivíduos e é determinado pelas condições materiais de existência.

Para compreender o ser humano em suas relações com outros seres humanos e com o mundo é preciso partir da análise do concreto, ou seja, das ações humanas concretas e não das ideias que os homens fazem a respeito de si.

No prefácio da obra Contribuição para a crítica da economia política, Marx escreveu: “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência”.

Com Marx, a questão da ideologia tomou ares críticos. Contrariando a filosofia existente até então, inclusive a de Hegel, Marx afirma que a ideologia é um reflexo das relações materiais que os homens estabelecem para sobreviver e que, portanto, ela não está acima da humanidade. A ideologia não pode ser tomada como algo metafísico, ao contrário, ela deve ser tomada como resultado dos esforços concretos, materiais, que a humanidade realiza para a sua reprodução. A ideia não antecede o ser humano, mas é sua criação.

As ideologias servem como orientação para os mais variados modos de se viver e quando são apropriadas indevidamente por alguns grupos específicos acabam se tornando modos de dominação. Segundo Marx, esse é o maior problema das ideologias generalizantes.

Marx tem uma outra

concepção de filosofia, qual seja, a de que ela deve possuir o caráter da transformação, da prática; trata-se da filosofia da práxis, isto é, a filosofia como ação transformadora.

Partindo da preocupação com as bases materiais de produção por meio das quais os seres humanos se relacionam e constroem-se, Marx enxerga o processo histórico como uma luta de classes sociais entre a classe dominante, que detém os meios de produção, e a classe dominada, que possui apenas a sua força de trabalho. Essa luta de classes se configura em modos de produção situados historicamente (primitivo, asiático, escravista, feudal, capitalista e socialista). Todos possuem forças produtivas que se refletem nas relações sociais de produção, em que a exploração da força de trabalho é uma constante.

Friedrich Nietzsche

Nietzsche (1844-1900) questiona a moral e a razão desenvolvidas no Ocidente, estabelecendo uma relação entre civilização e cultura: a primeira corresponde aos progressos materiais verificados nas sociedades humanas e a segunda diz respeito a uma espécie de formação espiritual.

Ao considerar os valores ocidentais, o pensador constata que a metafísica, a religião e a própria ciência produzidas eram a expressão de valores decadentes, de uma cultura degenerada, pois:

– a metafísica, por colocar o mundo inteligível em oposição ao mundo sensível e por estabelecer a transcendência como algo melhor do que aquilo que é o mundo, colocou no além algo que deve ser encontrado na própria realização da vida. Assim, a metafísica é a negação da vida e expressa uma cultura decadente;

– a religião, por querer instaurar um campo em que bem e mal se opõem, por afirmar um bem no além e por desvalorizar a expressão material sensível da vida, é a marca da cultura decadente;

– a ciência, por tentar oferecer explicações fundadas na ideia de causa e efeito, por querer estabelecer a partir disso os sentidos das coisas dentro de uma lógica, engana o homem com certezas de início e fim, quando o mundo é variedade, diversidade de forças que se comunicam, se relacionam e se constituem apenas como uma vontade de potência sem um princípio determinado (causa) e um fim definido (efeito).

Ao negar a moral dos fracos, como ele chama a moral ocidental, busca a afirmação de um novo homem que irrompe dessa cultura e civilização decadentes. Esse novo homem tem outra postura em relação à razão e à linguagem. Ele sabe evitar suas armadilhas e afirma a vida sem reservas, na própria realização da vontade de potência no mundo, momento em que encontramos a ideia de super-homem (Übermensch).

O super-homem nietzschiano se encontra muito além do bem e do mal, pois se desprende de todos os produtos civilizacionais de uma cultura decadente que oculta a vida em nome de certos princípios. Estes não passam de consolo para os fracos, para os escravos que visam pacificar a existência, que é tensão, conflito, criação e aniquilamento.

Século XX

1. Fenomenologia

Pensada no âmbito da teoria do conhecimento, a fenomenologia caracteriza-se pela recusa tanto do empirismo quanto do racionalismo tradicionais:

– a postura filosófica empirista é inadequada por conceber que os dados da experiência sejam passivamente recebidos pelos seres humanos;

– as teorias racionalistas equivocam-se ao não considerar de maneira pertinente o valor das experiências, com seu apriorismo que estabelece sistemas explicativos dissociados dos dados oferecidos pela realidade objetiva.

A fenomenologia propõe a investigação sobre a experiência humana, sobre o modo como os objetos do mundo – o próprio mundo em sua totalidade – revelam-se para a humanidade. Dito em outros termos, delineia-se pelo estudo sobre o fundamento do conhecimento humano e sobre como nos relacionamos com o mundo em que vivemos. De acordo com as palavras de seu fundador, o filósofo Edmund Husserl (1859-1938), fenomenologia é o projeto de retorno às coisas mesmas.

2. Jean-Paul Sartre

O ponto de partida da filosofia de Sartre (1905-1980) é o básico do existencialismo: a existência precede a essência, de forma que o ser humano só pode “ser” existindo, ou seja, vivendo. Isso esgota qualquer predefinição do ser humano.

O existencialismo tem como fundamento o reconhecimento da existência frente a essência, ou seja, antes de sermos qualquer coisa – humana ou não humana – o que faz sermos algo é nossa existência durante o nosso tempo de vida.

Dessa forma, Sartre nega qualquer espécie de teoria sobre a natureza humana e até mesmo a crença em Deus, pois, para este pensador francês, o ser humano existe para si, isto é, ele não foi criado por nenhuma essência preexistente. Daí o seu existencialismo ser também um humanismo.

Nesta concepção ontológica (o “vir a ser”, ou o “devir”) de que a existência precede a essência, podemos constatar que o ser humano parte do nada, daí a liberdade ser uma condição permanente da espécie humana. Como afirma Sartre, “estamos condenados à liberdade”. A existência em si é definida em princípio pelo nada, ou seja, pelo não-ser; tudo está por ser feito e o ser humano será o futuro que puder construir.

Só que a obrigação de ser livre gera uma angústia

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